
A propriedade rural e o meio ambiente
10/03/2025Newsletter Saes Advogados – 223
11/03/2025A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto n. 5.051/2004, consolidada por meio do Decreto Federal nº 10.088/2019, estabelece diretrizes para a Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) aos povos indígenas e tribais em processos administrativos, incluindo o licenciamento ambiental. No entanto, a ampliação indevida da CLPI compromete sua efetividade, gerando insegurança jurídica e impactando o desenvolvimento de projetos de infraestrutura essenciais para o país. E tudo isso, sem auxiliar efetivamente os povos que ela visava auxiliar.
A Convenção 169 define critérios objetivos para a aplicabilidade da CLPI. O primeiro critério é que os povos impactados devem ser indígenas ou tribais, conforme o artigo 1º[1] da Convenção, caracterizados por diferenças culturais, sociais e econômicas em relação à coletividade nacional e pela manutenção de instituições próprias. Ou seja, não são quaisquer povos ou populações tradicionais.
No Brasil, comunidades indígenas como os Yanomami e os Guarani-Kaiowá cumprem esses requisitos, pois mantêm suas próprias organizações sociais, idiomas e costumes diferenciados da sociedade majoritária. Já comunidades tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos, embora historicamente marginalizadas, não se enquadram automaticamente no conceito de povos indígenas ou tribais para fins da CLPI, salvo se apresentarem elementos que os caracterizem conforme a Convenção 169.
Além disso, comunidades pesqueiras frequentemente reivindicam participação em processos de licenciamento ambiental sob o argumento de que dependem dos recursos naturais afetados pelos empreendimentos. No entanto, essas comunidades não se enquadram em regra nos critérios da Convenção 169, pois não possuem organização social e cultural distinta da coletividade nacional, nem mantêm instituições próprias reconhecidas no texto da norma. Isso não significa que suas preocupações sejam ignoradas. Pelo contrário, a legislação ambiental brasileira[2] prevê outros mecanismos de participação. Os diagnósticos sócio-econômicos e nas audiências públicas realizadas durante o processo de licenciamento ambiental são exemplos disso. Nessas ocasiões, as comunidades pesqueiras podem apresentar suas demandas, obter informações sobre os impactos dos empreendimentos e contribuir para a formulação de medidas mitigadoras.
O segundo critério fundamental é que o projeto deve estar localizado em terras indígenas ou tribais e explorar recursos naturais nelas existentes, conforme o artigo 15, parágrafo 2[3]. Por exemplo, a construção de hidrelétricas em terras dos povos Kayapó ou Munduruku, que impactam diretamente seus modos de vida e seus recursos naturais, exige a realização da CLPI. No entanto, se um empreendimento estiver fora dessas terras e não explorar seus recursos, a exigência da consulta não se aplica automaticamente, evitando distorções no processo de licenciamento ambiental e na correta aplicação da Convenção. A ampliação indiscriminada da CLPI desconsidera esses critérios e gera obstáculos desnecessários à implantação de empreendimentos, sem trazer benefícios à população que a Convenção deveria resguardar.
Importante diferenciar os critérios da Convenção 169 da OIT daqueles estabelecidos pela Portaria Interministerial 60/2015. Enquanto a Convenção 169 se aplica exclusivamente a povos indígenas e tribais, conforme definições expressas em seu artigo 1º, a Portaria 60/2015 estabelece a necessidade de avaliação dos impactos a comunidades tradicionais no processo de licenciamento ambiental. A Portaria amplia o escopo de consideração de impactos socioambientais, mas não confere às comunidades tradicionais as mesmas prerrogativas de consulta prévia garantidas pela Convenção 169. Assim, não se pode confundir os dois instrumentos, pois a CLPI não deve ser aplicada indiscriminadamente a qualquer grupo tradicional, sob pena de desvirtuar sua finalidade e comprometer a segurança jurídica dos empreendimentos.
A aplicação inadequada da CLPI resulta em insegurança jurídica, com aumento da judicialização de projetos e incerteza regulatória, impactos no desenvolvimento devido a entraves desproporcionais à infraestrutura e ao crescimento econômico, além da desvalorização da proteção efetiva, comprometendo a legitimidade da consulta para comunidades que realmente necessitam dela.
Cabe ressaltar que a CLPI tem caráter consultivo e não autorizativo. O artigo 15 da Convenção 169 prevê que a consulta deve ocorrer antes da implementação do empreendimento, assegurando a participação dos povos indígenas e tribais sem conferir-lhes poder de veto. No contexto do licenciamento ambiental, a CLPI deve ser realizada antes da efetiva implantação do projeto, garantindo um equilíbrio entre desenvolvimento sustentável e respeito aos direitos indígenas. Exemplos concretos demonstram essa necessidade de equilíbrio. A construção da Usina de Belo Monte gerou intensos debates sobre a aplicação da CLPI, pois afetou diretamente comunidades indígenas que vivem na região. Por outro lado, a expansão de rodovias que não atravessam terras indígenas não deveria ser sujeita à CLPI, pois não atende aos critérios estabelecidos pela OIT 169.
A CLPI deve ser aplicada nos limites estabelecidos pela Convenção 169 e pelo ordenamento jurídico brasileiro. Sua banalização compromete tanto a segurança jurídica dos empreendimentos quanto a efetividade da proteção dos povos indígenas e tribais. O debate deve ser técnico e fundamentado, evitando distorções interpretativas que criem barreiras desnecessárias ao desenvolvimento nacional.
[1] Artigo 1º 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. 3. A utilização do termo “povos” na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.
[2] Notadamente, a Resolução Conama 237/1997.
[3] 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.
Publicado em: 11/03/2025
Por: Marcos Saes e Gleyse Gulin