O objetivo deste breve artigo é tratar do verbete n. 629 da súmula do STJ: “Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar.” A redação do dispositivo permite duas leituras distintas.
Se for compreendida como simples permissão de que a decisão tenha mais de uma carga de eficácia (permitindo que o juiz mande alguém fazer alguma coisa e pagar algo, se o caso concreto assim exigir), o texto não diz nada de extraordinário. Dois pedidos podem ser cumulados na mesma petição inicial: isso é o óbvio.
Por outro lado, se for interpretado como um permissivo absoluto para que haja a condenação aos dois tipos de obrigação, mesmo que uma delas seja suficiente para reparar integralmente o dano, o texto está dizendo um absurdo que contraria as regras mais básicas da responsabilidade civil, possibilitando condenação além do dano causado pelo ato ilícito. Aí está o absurdo.
No julgamento de casos concretos, o STJ oscila entre as duas interpretações. A Primeira Turma costuma entender o óbvio; a Segunda, o absurdo. 1
Qual das duas leituras está correta? Analisando os julgamentos que deram origem à súmula 2, logo se percebe que ela derivou de um gigantesco mal-entendido.
Até 2005, era recorrente no STJ a discussão sobre a possibilidade de ações civis públicas conterem mais de um pedido de natureza diferente. Isso se devia à infeliz redação do art. 3º da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/65), que dizia que a ação poderia ter por objeto “a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. A partícula “ou” levou o STJ, por muitos anos, a entender que um dos pedidos excluía o outro. Se a reparação do ato ilícito exigisse duas prestações, seria preciso ajuizar duas ACPs. Esse entendimento estava equivocado, e foi superado em definitivo em 2005, em voto proferido pelo Min. Teori Zavascki. 3
Essa discussão já estava morta e sepultada há mais de uma década quando, em 2018, o STJ decidiu editar o verbete 629 da sua súmula, usando como fundamento, entre outros, o acórdão de 2005, com o voto-vista do Min. Teori Zavascki. Mas, quando ressurgiu para servir de base à súmula, a decisão estava transformada, como um eco que se repete por muito tempo e acaba ficando com a sonoridade distorcida.
A discussão travada até 2005 era exclusivamente processual, sobre a necessidade de ajuizar duas ACPs separadas para discutir duas obrigações decorrentes do mesmo fato. Ela não tinha relação nenhuma com o problema da possibilidade material de cumulação das indenizações em cada caso concreto. Mas, de tanto repetir “é possível cumular a obrigação de indenizar com a de reparar”, alguns membros do STJ acabaram ouvindo a si mesmos dizer que “é necessário cumular a obrigação de indenizar com a de reparar”.
Quase todos os acórdãos que deram origem à súmula contém a ressalva de que a cumulação de pedidos é possível, mas não obrigatória. Só se formula o pedido indenizatório nos casos em que a reparação é impossível. A única exceção é o acórdão mais recente entre eles, o recurso especial n. 1.669.185, de 2017, de relatoria do Min. Herman Benjamin. Naquele caso, o STJ reformou decisão do TRF4 que havia dispensado a obrigação de indenizar por reconhecer que o dano havia sido integralmente reparado, por entender que essa cumulação seria possível em tese, quer o dano continuasse a existir ou não.
Percebe-se, assim, que a súmula 629 não contribuiu em nada para resolver a divergência jurisprudencial. Na verdade, os próprios precedentes que lhe deram origem são conflituosos.
A pergunta fundamental – é preciso indenizar se o dano ambiental puder ser integralmente reparado? – continua sem resposta dentro do próprio STJ. A Primeira Turma vem entendendo o óbvio; a Segunda, o absurdo. Melhor seria revogar a súmula e pacificar a discussão de vez.
1 Por exemplo, no julgamento do agravo interno em recurso especial n. 1.766.544 (1ª Turma, j. em 07/10/2019), a Min. Regina Helena Costa aplicou o primeiro entendimento, afirmando ser entendimento consolidado do STJ que “é possível a cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar nos casos de lesão ao meio ambiente, contudo, a necessidade do cumprimento de obrigação de pagar quantia deve ser aferida em cada situação analisada“(grifei). Em sentido oposto, no julgamento do recurso especial n. 1.702.981 (2ª Turma, j. em 12/04/2019), o Min. Mauro Campbell Marques disse que o STJ entende cabível “a cumulação da indenização por danos ambientais com a obrigação de fazer”, e que “não se mostra suficiente para afastá-la a tese de que descabida indenização quando possível a recuperação da área degradada“. As duas turmas afirmam coisas opostas sobre o mesmo assunto – e, ironicamente, ambas afirmam estar aplicando o “entendimento consolidado” do STJ.
2 Sempre que o STJ edita um verbete de súmula, ele deve indicar alguns exemplos de casos que comprovem que o entendimento do Tribunal realmente está consolidado nesse sentido. No caso da súmula 629, a lista de julgados está disponível no próprio site do STJ e pode ser acessada por meio deste link (pg. 1.317 do documento).
3 Com o brilhantismo que lhe era peculiar, o Min. Teori extirpou o antigo entendimento ao esclarecer que “Exigir, para cada espécie de prestação, uma ação civil pública autônoma, além de atentar contra os princípios da instrumentalidade e da economia processual, ensejaria a possibilidade de sentenças contraditórias para demandas semelhantes, entre as mesmas partes, com a mesma causa de pedir e com finalidade comum (medidas de tutela ambiental), cuja única variante seriam os pedidos mediatos, consistentes em prestações de natureza diversa. A proibição de cumular pedidos dessa natureza não existe no procedimento comum, e não teria sentido negar à ação civil pública, criada especialmente como alternativa para melhor viabilizar a tutela dos direitos difusos, o que se permite, pela via ordinária, para a tutela de todo e qualquer outro direito” (STJ, 1ª Turma, recurso especial n. 605.323, j. em 18/08/2005, rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki).
Publicado em: 31/05/2021
Por: Pedro Reschke
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