Posso compensar supressão de vegetação sem autorização?

O bioma Mata Atlântica, considerado pela Constituição Federal de 1988 como patrimônio nacional1, possui um regime diferenciado de proteção regrado pela Lei Federal 11.428 de 20062. A intervenção no bioma pode seguir as diretrizes do regime jurídico geral, previsto no Título II da norma, ou as diretrizes do regime jurídico especial, do Título III3

Independentemente do regime adotado, para autorizar a ocupação e uso dos bens ambientais, o órgão competente deve considerar o estágio sucessional da vegetação existente no local, além de exigir uma compensação ambiental.

A Lei Federal 11.428 de 2006 adiantou-se ao antecipar a possibilidade do empreendedor optar por alterar, indevidamente, o estágio sucessional da vegetação a fim de buscar um regime mais permissivo. Dessa forma, nos casos de intervenção não autorizada, as avaliações posteriores devem considerar, para todos os fins, a classificação anterior: 

Art. 5º A vegetação primária ou a vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica não perderão esta classificação nos casos de incêndio, desmatamento ou qualquer outro tipo de intervenção não autorizada ou não licenciada.

Para facilitar a compreensão, vamos utilizar um exemplo. Caso um empreendedor pretenda instituir um loteamento em um imóvel com vegetação primária (o que é vedado pelo artigo 30 da Lei Federal 11.428 de 2006), mesmo que, por ação ou omissão dele, ocorra um incêndio “limpando” o terreno, para fins de intervenção o imóvel ainda possui vegetação em estado primário.

Quando esse empreendedor solicitar ao órgão competente uma licença ou autorização para intervir no imóvel, o órgão deverá considerar a existência de vegetação primária no local, por mais que o incêndio tenha alterado, na prática, esse status.   

Em sentido semelhante, também é vedada pela Lei Federal 11.428 de 2006 a realização de compensação ambiental nos casos de “corte ou supressão ilegais4. Essa disposição evita que o empreendedor realize a intervenção para além do previsto na legislação e depois busque a regularização por meio da compensação.

Caso a hipótese fosse possível, o interessado simplesmente faria um cálculo econômico, decidindo se a compensação ambiental é mais ou menos vantajosa quando comparada com a valoração da área onde a intervenção é vedada, burlando, assim, a restrição. 

O objetivo da disposição é impedir que o empreendedor fuja das restrições ambientais, solicitando posteriormente a realização de compensação ambiental. Acontece que a vedação precisa ser lida dentro do contexto do seu objetivo jurídico.

Para entender isso, vamos imaginar outro exemplo, utilizando, ainda, o caso do empreendedor que pretende instaurar um loteamento. Supondo que esse imóvel esteja enquadrado dentro da previsão do artigo 30, inciso I, da Lei Federal 11.428 de 2006, ou seja, possui vegetação secundária em estágio avançado de regeneração, o empreendedor pode intervir em 50% do imóvel, mantendo os outros 50% intocados, conforme a redação do dispositivo: 

Art. 30. É vedada a supressão de vegetação primária do Bioma Mata Atlântica, para fins de loteamento ou edificação, nas regiões metropolitanas e áreas urbanas consideradas como tal em lei específica, aplicando-se à supressão da vegetação secundária em estágio avançado de regeneração as seguintes restrições:

I – nos perímetros urbanos aprovados até a data de início de vigência desta Lei, a supressão de vegetação secundária em estágio avançado de regeneração dependerá de prévia autorização do órgão estadual competente e somente será admitida, para fins de loteamento ou edificação, no caso de empreendimentos que garantam a preservação de vegetação nativa em estágio avançado de regeneração em no mínimo 50% (cinqüenta por cento) da área total coberta por esta vegetação, ressalvado o disposto nos arts. 11, 12 e 17 desta Lei e atendido o disposto no Plano Diretor do Município e demais normas urbanísticas e ambientais aplicáveis;

Caso ele realize a intervenção em 100% do imóvel, ultrapassando a margem permitida na legislação, ele não poderá solicitar a compensação ambiental dos 50% suprimidos ilegalmente. 

Além disso, provavelmente o empreendedor sofrerá responsabilizações do ponto de vista administrativo e penal, com base no Decreto Federal 6514 de 2008 e na Lei Federal 9.605 de 1998. Por fim, na área onde a intervenção excedeu o limite legal, deverá ser realizado um Plano de Recuperação de Área Degradada – PRAD, recuperando a vegetação até o estágio original, ou seja, secundária em estágio avançado de regeneração. 

Agora, vamos acrescentar outro elemento, supondo que esse mesmo empreendedor, apesar de poder intervir em 50% do seu imóvel, realizou a intervenção nessa área sem as devidas licenças ou autorizações ambientais, seja por desconhecimento, desatenção ou até mesmo ato deliberado. Em relação às responsabilizações, pouca coisa muda, mas no momento nos interessa a necessidade de realização, ou não, do PRAD. 

Pela leitura descontextualizada da Lei Federal 11.428 de 2006 não existe dúvida. O empreendedor deverá recuperar a área até que ela volte ao estágio original, tendo em vista a impossibilidade de compensação. 

Acontece que essa interpretação gera uma situação curiosa, para não dizer absurda: O proprietário deverá realizar a recuperação em uma área onde poderia intervir, aguardando às vezes por 5, 10, 15 anos, para depois, ao final, poder solicitar uma licença ou autorização e realizar a intervenção onde acabou de recuperar. 

Ao fim, ninguém ganhou nada. O empreendimento saiu (só atrasou) e o meio ambiente sofreu a intervenção igual. O saldo é uma grande perda de tempo. 

Para evitar esses procedimentos e exigências circulares é necessário uma leitura contextualizada da Lei Federal 11.428 de 2006, diferenciando dois conceitos: (i) a supressão ilegal de vegetação nativa; e a (ii) supressão irregular de vegetação nativa. 

Enquanto a supressão ilegal ocorre nos casos em que a intervenção é vedada pela legislação, na intervenção irregular ela é possível, tendo ocorrido sem a obtenção das licenças ou autorizações necessárias. Ou seja, na segunda hipótese existe um problema de natureza burocrática e administrativa, e não ambiental.

Dessa forma, ao invés de realizar uma recuperação ambientalmente despropositada, o caminho para o empreendedor que interviu irregularmente é buscar, junto ao órgão ambiental competente, as autorizações ou licenças necessárias, apresentando documentos que demonstrem o estado sucessional anterior, bem como a possibilidade de intervenção e realizando a compensação ambiental devida. 

Cabe repetir que essa regularização não impede responsabilizações de natureza administrativa e penal, assim como investigações no âmbito civil, que deverão ser realizadas nas instâncias adequadas. Mas por outro lado, a diferenciação entre as intervenções  ilegais e irregulares garante maior eficiência da tutela ambiental, além de garantir os objetivos existentes nas disposições da Lei Federal 11.428 de 2006.


1 Art. 225 § 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

2 Em 2022, comemorando o Dia Nacional da Mata Atlântica, foi publicado o artigo “Mata Atlântica – Uma tutela jurídica em construção”, tratando de questões gerais do bioma e direcionando o leitor para diferentes artigos escritos pelo Saes Advogados. Disponível em: https://www.saesadvogados.com.br/2022/05/27/mata-atlantica-uma-tutela-juridica-em-construcao/. Acesso dia 18 de agosto de 2023.

3  Sobre os regimes jurídicos da Mata Atlântica, consultar o artigo: Mata Atlântica: quando, o como e de que forma posso suprimir e compensar, de autoria de Marcos André Bruxel Saes. Disponível em: https://www.saesadvogados.com.br/2019/05/28/mata-atlantica-quando-como-e-de-que-forma-posso-suprimir-e-compensar/. Acesso dia 18 de agosto de 2023.

4 Art. 17. O corte ou a supressão de vegetação primária ou secundária nos estágios médio ou avançado de regeneração do Bioma Mata Atlântica, autorizados por esta Lei, ficam condicionados à compensação ambiental, na forma da destinação de área equivalente à extensão da área desmatada, com as mesmas características ecológicas, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica, e, nos casos previstos nos arts. 30 e 31, ambos desta Lei, em áreas localizadas no mesmo Município ou região metropolitana.

§ 1º Verificada pelo órgão ambiental a impossibilidade da compensação ambiental prevista no caput deste artigo, será exigida a reposição florestal, com espécies nativas, em área equivalente à desmatada, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica.

§ 2º A compensação ambiental a que se refere este artigo não se aplica aos casos previstos no inciso III do art. 23 desta Lei ou de corte ou supressão ilegais.

Publicado dia: 14/08/2023.

Por: Mateus Stallivieri

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