Em meio a comemoração de uma década de existência do vigente Código Florestal (CFlo) Brasileiro (Lei 12.651/2012), é importante reconhecer que suas disposições têm tido, em partes, dificuldade de serem aplicadas na íntegra, restando ainda muitas propriedades em situação de irregularidade quando o assunto é conformidade com as leis de proteção dos recursos naturais.
Nesse contexto, é preciso relembrar que muitos dos instrumentos trazidos pelo CFlo de 2012 carecem de legislação específica para serem efetivados, como é o caso da Cota de Reserva Ambiental – CRA nas hipóteses de compensação.
Além disso, quando falamos em números, salta aos olhos que a análise dos CARs das propriedades anda em ritmo lento, tendo em vista que apenas 19,28% dos cadastros no Brasil passaram por algum tipo de análise.[1] Ou seja, a falta de celeridade da Administração Pública também é um fator que tem contribuído com a citada irregularidade.
Considerando o cenário atual e, consequentemente, a necessidade urgente de regularização das normas ambientais nas propriedades rurais, foi criado o Decreto 11.015/2022 que implementa o Plano Nacional de Regularização Ambiental de Imóveis Rurais, denominado RegularizAgro.
O principal objetivo do RegularizAgro é propor ações para o efetivo cumprimento das determinações do Código Florestal, do Decreto nº 7.830/2012 e do Decreto nº 8.235/2014 através das medidas elencadas em seu artigo 2º.
Entre as metas trazidas, destaca-se a criação de uma atmosfera mais sinérgica entre União e Estados, melhorando o trabalho do Sistema Florestal Brasileiro que poderá se planejar no apoio às Unidades Federativas, agilizando o processo de regularização ambiental. A instituição do plano visa cumprir o compromisso assumido pelo Brasil na COP-27[2] de combate ao desmatamento ilegal e a diminuição da emissão de metano.
O RegularizaAgro não é a primeira tentativa do governo brasileiro de uniformizar a proteção ambiental com as práticas dos proprietários rurais. Desde 1934, ano de criação do primeiro Código Florestal Brasileiro, foram experimentados diferentes modelos e formatos, sendo a questão um verdadeiro processo continuado.
Para entender o contexto com que se deu a edição do Decreto 11.015/2022, faremos no presente artigo um breve histórico da legislação ambiental no Brasil, passando pelos desafios de sua aplicação atual, até o RegularizAgro.
O primeiro Código Florestal Brasileiro foi sancionado em 1934, através do Decreto 23.793/34. Nesse momento foram instituídos espaços territoriais especialmente protegidos prevendo uma limitação administrativa da propriedade privada. O Código de 34 estabeleceu que deveriam ser mantidas reservas florestais obrigatórias no total de 25% da área da propriedade rural[3], além das chamadas florestas remanescentes que constituíam os parques nacionais, estaduais e municipais, por exemplo.[4]
Anos se passaram, inúmeras alterações na legislação brasileira ocorreram, até que se criou em 1964 o Estatuto da Terra[5], o qual abarca o princípio da função social da propriedade, bem como expõe a preocupação com a preservação do meio ambiente.
No ano seguinte, passou a vigorar um novo Código Florestal[6], com uma nova delimitação de porcentagem destinada a reserva legal, definida agora com base da região geográfica da propriedade, sendo 20% no Sul e Sudeste, 30% no Centro-oeste e 50% no Norte e parte norte do Centro-oeste. Além disso, este novo mandamento denominou as áreas ao longo de cursos d’água, ao redor de lagoas, nascente, topo de morros, encostas, restingas, chapadas como Área de Preservação Permanente (APP), presente até hoje em nossa legislação.
Por fim, em 2012 foi publicada a terceira e vigente versão do Código Florestal Brasileiro e com ele foram novamente previstos instrumentos para garantir a preservação da natureza, como a Reserva Legal e APPs, ainda que em propriedades particulares.
Foram desenvolvidos mecanismos como Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA). Enquanto o primeiro consiste em um mecanismo para correta aplicação da legislação ambiental, o segundo estabelece medidas corretivas para as propriedades que não se encontram em conformidade com o CFlo.
Ambos os institutos serão analisados nos tópicos seguintes.
O CAR é registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.[7] É considerado uma das principais bases de organização do país no que diz respeito à implementação do Código Florestal, é obrigatório para todos os imóveis rurais de forma a obter a regularidade ambiental.
Regulamentado pela Instrução Normativa MMA nº 2 de 2014, este instrumento tem a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais referentes às Áreas de Preservação Permanente – APP, das áreas de Reserva Legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Uso Restrito e das áreas consolidadas, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.[8]
Cabe ressaltar que as informações prestadas são de responsabilidade do declarante e irão compor o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR). Conforme é possível perceber, o CAR possui natureza declaratória e permanente, sendo certo que caso existam declarações falsas o proprietário responderá por sanções penais e administrativas.
Nos moldes artigo 55 do CFlo, a inscrição de pequena propriedade ou posse rural familiar no CAR deverá seguir o procedimento simplificado, apresentando apenas identificação do proprietário ou possuidor rural e comprovação da propriedade ou posse[9] e do croqui[10] indicando o perímetro do imóvel, APP e remanescentes que compõem a Reserva Legal.
Segundo o artigo 3º, inciso V do CFlo, a pequena propriedade é aquela explorada mediante o trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no art. 3º da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.
Importa frisar que a inscrição no CAR não promove a regularização fundiária. Isto porque este Cadastro está essencialmente ligado à regularização ambiental do imóvel rural apenas. Nos termos do artigo 2º, inciso XV, do Decreto 7.830/2012, “regularização ambiental” são as medidas tomadas no imóvel rural com o intuito de atender a legislação ambiental.
Há diversos desafios na implementação do CAR como a falta de informação do proprietário rural e indisponibilidade financeira já que o georreferenciamento tem um elevado custo. Além disso, o próprio Código Florestal apresenta muitos desafios na sua implementação como interpretações divergentes sobre alguns de seus dispositivos, ausência de fiscalização, além da falta de regulamentação de alguns de seus instrumentos, como é o caso dos Programas de Regularização Ambiental (PRA.).
Conforme mencionado, o preenchimento do CAR compõe a base de dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, também conhecido como SICAR, criado através do Decreto 7.830/2012, que funciona recebendo, gerenciando e integrando os dados dos CARs de todos os entes federativos.
Cabe destacar que este sistema exerce uma função importantíssima para a preservação do meio ambiente monitorando e cadastrando as informações sobre remanescentes de vegetação nativa, Área de Preservação Permanente, áreas de uso restrito, Reserva Legal obtidas através do cadastro das propriedades rurais.
Nos últimos anos foram desenvolvidos dois importantes módulos no âmbito do SICAR Federal: Módulo de Análise de Equipe Dinamizada (AnalisaCar) e o Módulo de Regularização Ambiental (MRA). Ambos se apresentam como canais para o avanço da regularização ambiental das propriedades rurais e das posses.
Para as propriedades rurais que estão em desacordo com a legislação ambiental, identificadas através da inscrição no CAR, o CFlo trouxe mecanismos que permitem a solução desses passivos ambientais pelos proprietários. Dentre eles, cabe destacar o Programa de Regularização Ambiental (PRA) que tem como objetivo adequar os imóveis rurais às exigências de nossa legislação ambiental, sendo o CAR uma chave de acesso para sua adesão.
De acordo com o artigo 9º do Decreto 7.830/2012, estes programas compreendem o conjunto de ações ou iniciativas a serem desenvolvidas por proprietários e posseiros rurais com o objetivo de adequar e promover a regularização ambiental com vistas ao cumprimento do disposto no Capítulo XIII da Lei no 12.651, de 2012.
A União estabelecerá normas gerais para o PRA, ficando a cargo dos Estados e o Distrito Federal estabelecerem normas de caráter mais específicos[11] levando em consideração as peculiaridades de cada região. Os municípios são excluídos da competência de se instituir um PRA como se verifica no caput do artigo 59 do CFlo.
Vale trazer ao conhecimento o Decreto 8.235/2014, que estabelece normas gerais complementares ao PRA dos Estados e do Distrito Federal. Mais especificamente em seus artigos 13 a 15, fica instituído o Programa Mais Ambiente Brasil com o fito de apoiar, articular e integrar os PRAs nos Estados e DF.
Segundo o artigo 2º do decreto de 2014, os PRAs restringem-se à regularização das Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito, que poderá ser efetivada mediante recuperação, recomposição, regeneração ou compensação.
Cabe destacar que quando o assunto é Programa de Regularização Ambiental, apenas quinze estados possuem legislações específicas, o que dificulta o acesso dos proprietários e a consequente regularização ambiental de suas propriedades.[12]
Além disso, é possível perceber a falta de interesse dos produtores rurais na adesão ao PRA, visto que apenas uma pequena parte dos cadastros segue para etapa inicial do PRA, que é a assinatura do Termo de Compromisso. Enquanto no Acre 60% de seus cadastros validados com passivos possuem Termo de Compromisso, Rondônia contabiliza apenas 5%.[13]
Conforme já mencionado, atualmente, o Serviço Florestal Brasileiro vem enfrentando diversos desafios para a implementação do CAR em todo o território. Há uma demora considerável na análise dos cadastros feitos pelos proprietários rurais, dificultando a aplicação correta do Código Florestal Brasileiro e, consequentemente, a regularização ambiental dos imóveis rurais.
Dentre os benefícios para o produtor rural de ter uma propriedade regularizada do ponto de vista ambiental podemos citar: (i) agregar valor ao produto comercializado; (ii) acesso às linhas de crédito rural; (iii) possibilidade de aderir a programas de pagamentos por serviços ambientais; (iv) comercialização de Cotas de Reserva Ambiental (CRA), caso haja excedentes; (v) e evitar responsabilização do proprietário.
Em vista da necessidade de superar esses desafios, foi criado o Decreto 11.015/2022 que propõe uma série de medidas e estratégias visando a construção de um plano de ação governamental para o garantir o cumprimento das obrigações previstas na legislação ambiental brasileira, resultando no avanço da regularização ambiental no país.
Nesse sentido, o novo mandamento determinou a criação de uma instância formal de governança pública estratégica para promover a regularização ambiental em todo o território. Conforme disposto em seu artigo 5º, deverá ser estabelecido um Comitê Gestor, no âmbito do MAPA, que atuará na definição das estratégias de médio e longo prazo para o avanço da implementação do CFlo.
O Comitê será composto por representantes do MAPA, INCRA, MMA, EMBRAPA, CONSEAGRI e ABEMA, nos moldes de seu artigo 6º. Ademais, é permitido que o Comitê crie e extinga as Câmaras Técnicas de assuntos específicos para que possa realizar todos os objetivos elencados no artigo 2º, podendo contar com especialistas das áreas importantes para criação de instrumentos normativos e técnicos.
Noutro aspecto, o Plano busca aperfeiçoar os sistemas de informação que compõem o CAR promovendo a dinamização dos processos de análise do registro, buscando o melhoramento do SICAR e, consequentemente, ampliando o combate ao desmatamento ilegal e viabilizando a regularização ambiental em todo o território. Os órgãos estaduais terão extrema importância nessa fase visto que são eles que iniciam todo o processo de registro, análise e cancelamento do CAR, assim como determinam os Programas de Regularização Ambiental (PRA).
Outro objetivo imposto pelo Decreto é articular os esforços, nas esferas federal, estadual, distrital e municipal, de natureza política, estratégica, normativa e tecnológica, de forma a garantir o alinhamento institucional e organizacional necessário entre os órgãos públicos responsáveis pela execução dos Programas de Regularização Ambiental estaduais e distrital dos imóveis rurais, previstos no art. 59 da Lei nº 12.651[14], o que é de extrema importância visto que apenas 15 estados[15] regulamentaram seus PRAs.
Importante ressaltar que o Comitê Gestor, juntamente com as Câmaras Técnicas, terão 180 dias, contados a partir da designação dos membros do Comitê Gestor, que deverá ocorrer em até 30 dias da publicação do Decreto, para a elaboração do Plano.[16]
Por todo o exposto, há grandes expectativas para a implementação do RegularizAgro pela possibilidade do Brasil alcançar a regularização ambiental dos imóveis rurais com a efetiva aplicação de seu Código Florestal que completará uma década de existência no ano de 2022. Conforme exposto, é de extrema importância que o produtor esteja com sua propriedade rural regularizada, sobretudo para fins de evitar eventuais penalidades pelo poder público. Frise-se que a instituição do Plano ultrapassa as fronteiras, demonstrando para o mundo a preocupação do nosso país em proteger sua natureza e cumprir os compromissos assumidos perante a comunidade internacional.
[1] https://www.florestal.gov.br/numeros-do-car
[2] Na COP 26 ocorrida em 2021 em Glasgow, o Brasil se comprometeu com metas como o combate ao desmatamento ilegal e a diminuição da emissão de metano. Uma maneira de se alcançar esses objetivos é promovendo a regularização ambiental das propriedades amoldando-as ao Código Florestal Brasileiro seja aderindo aos Programas de Regularização Ambiental para realizar a recuperação florestal, seja simplesmente cumprindo as porcentagens mínimas determinadas pelo Código para preservação de vegetação nativa dentro das propriedades.
[3] Art. 23. Nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.
[4] Art. 5º. Serão declaradas florestas remanescentes:
a)as que formarem os parques nacionais, estaduais ou municipais;
b)as em que abundarem ou se cultivarem espécimes preciosos, cuja conservação se considerar necessária por motivo de interesse biológico ou estético;
c)as que o poder público reservar para pequenos parques ou bosques, de gozo público.
[5] Lei 4.504/1964
[6] Lei 4.771/1965
[7] Capítulo VI da Lei 12.651/2012
[8]https://www.florestal.gov.br/inventario-florestal-nacional/?option=com_content&view=article&id=74&Itemid=94
[9] Incisos I e II do parágrafo 1º do artigo 29 do Código Florestal.
[10] Artigo 2º, inciso X do Decreto 7.830/2012
[11] Parágrafo 1º artigo 59 do CFlo
[12] Estados com PRA regulamentado: Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia, São Paulo e o Distrito Federal.
[13] https://www.climatepolicyinitiative.org/pt-br/publication/onde-estamos-na-implementacao-do-codigo-florestal-radiografia-do-car-e-do-pra-nos-estados-brasileiros-edicao-2021/
[14] Art. 2º, IV do Decreto 11.015/2022
[15] https://www.climatepolicyinitiative.org/pt-br/publication/onde-estamos-na-implementacao-do-codigo-florestal-radiografia-do-car-e-do-pra-nos-estados-brasileiros-edicao-2021/
[16] Decreto 11.015/2022.
Art. 14. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, com fundamento no resultado dos trabalhos do Comitê Gestor e das Câmaras Técnicas, terá prazo de cento e oitenta dias, contado da data da designação dos membros do Comitê Gestor, para apresentar as estratégias, as metas, os indicadores de monitoramento e os prazos do RegularizAgro.
Publicado dia: 16/05/2022
Por: Giuliana Giunchedi
Fonte: Direito Ambiental
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