Terminais portuários como figuras estratégicas para o enfrentamento da crise climática
04/10/2021A relevância do Brasil nas questões ambientais.
05/10/2021O que era para ser mais uma Ação Civil Pública (ACP)1 proposta apenas para impugnar o licenciamento ambiental de um empreendimento hidrelétrico resultou na declaração pelo judiciário de uma área de 24.397,4 km² de extensão em território indígena. E já se está dizendo por aí que essa declaração é definitiva e equivalente à demarcação formal da área pelo Poder Executivo. Seria cômico, se não fosse trágico.
Isso tudo aconteceu no Paraná, mais precisamente na Bacia Hidrográfica do Rio Tibagi. A bacia passa por nada menos que 49 municípios e ocupa cerca de 12% do território do estado. Além de possuir 65 outros rios menores que desaguam no Rio Tibagi2.
A questão indigena era apenas um entre os vários argumentos utilizados pelo Ministério Público Federal (MPF), que questionava também a inconsistência do estudo ambiental apresentado, seu respectivo Termo de Referência (TRE), definição de área de influência, vícios na tramitação do licenciamento, entre outros.
No entanto, foi na questão indígena que o juiz focou – declarando e reconhecendo a bacia do Rio Tibagi como território Kaingang e Guarani, nos termos dos artigos 13 e 14 da Convenção 169 da OIT. A sentença foi então confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e posteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Hoje, o processo encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF) em vias de ser pautado para julgamento de embargos declaratórios (Recurso Extraordinário n. 1.256.969, Rel. Min. Rosa Weber).
A dita decisão deu luz ao questionamento presente no título deste artigo. Mas, afinal, pode o Poder Judiciário declarar uma área como território indigena? Conforme nossa Constituição Federal, não. Antes de aprofundar essa resposta, de início, importante esclarecer que nossa constituição teve o cuidado de não falar em território, e sim em terras indígenas para que ficasse claro que “nenhuma terra indigena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indigena se constitui em unidade federada”3.
No artigo “A importância da demarcação de terras indígenas para o licenciamento ambiental” já discorremos que a demarcação de terras indígenas é de competência exclusiva do poder executivo da União4. Ainda, o Ministro Carlos Brito, no julgamento do famoso caso Raposa Serra do Sol (Petição n. 3.388), externa esse mesmo entendimento de que somente a ela compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente.
O processo demarcatório é um procedimento moroso que, além de envolver diversas etapas, tem implicações socioeconômicas decorrentes dos direitos indígenas. A inobservância do prazo de 5 (cinco) anos a partir da promulgação da Constituição5 (de natureza prognóstica) para a conclusão do processo demarcatório pelo executivo, não justifica, a nosso ver, razão para que o judiciário faça as vezes do executivo ao declarar ou reconhecer qualquer área como terra/território indígena sem o devido procedimento formal de demarcação.
Mais: mesmo que se admitisse que o Poder Judiciário pudesse demarcar território indígena (e não tem, como visto), o meio escolhido aqui seria totalmente inadequado.
Essa ação civil pública tratava do licenciamento ambiental de um único empreendimento. A questão da terra indígena não era a questão principal debatida no processo, mas tão somente o fundamento da decisão. Por isso, o comando da decisão só poderia analisar se aquele empreendimento impactava terras indígenas ou não – pois, como determina o Código de Processo Civil, os motivos de uma decisão não fazem coisa julgada (art. 504, I) e nem podem afetar terceiros que não participaram do processo (art. 506).
Assim, o juiz, ao afirmar que a bacia do Rio Tibagi era terra indígena, estava fazendo essa afirmação para os fins dos impactos específicos daquele empreendimento, que foi o único analisado no processo. A decisão não disse – e nem poderia dizer, pois não era esse o objeto do processo – que todo e qualquer empreendimento instalado na bacia do Rio Tibagi afetaria áreas indígenas.
Assim, é equivocado entender que qualquer licenciamento ambiental de empreendimento hidrelétrico, independente de seu porte e grau de impacto, localizado na bacia do Rio Tibagi, deve observar o que determina a legislação ambiental a respeito de intervenção em terra indígena – competência do IBAMA, intervenção da FUNAI e realização de estudos de componente indigena, sem mencionar as determinações constitucionais.
Segundo informações do Instituto Água e Terra (IAT) há atualmente na bacia mais de 40 (quarenta) empreendimentos hidrelétricos, em diferentes etapas de licenciamento ambiental, impactados pela decisão. Além de 11 (onze) aproveitamentos em estudo que possivelmente terão seus licenciamentos sobrestados.
A mora pública nos processos demarcatórios de terras indígenas e quilombolas têm gerado insegurança jurídica aos empreendedores. Apesar de haver um entendimento quase pacificado sobre a suficiência do auto reconhecimento dessas comunidades tradicionais, a demarcação de suas áreas é importante para a definição de áreas de influência, participação de intervenientes, medidas mitigadoras e compensatórias em processos de licenciamento. Decisões como essa, que culminam na usurpação de competência do poder executivo pelo judiciário, fazem com que a insegurança e a imprevisibilidade só agravem.
1ACP n. 2006.70.01.004036-9.
2 Acesso disponível em: http://www.iat.pr.gov.br/sites/agua-terra/arquivos_restritos/files/documento/2020-07/tibagi.pdf
3Pet 3388, Relator: Min. CARLOS BRITO, STF, julgado em 19/03/2009.
4Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (CF, 1988)
5Art. 67 do ADCT.
Publicado em: 04/10/2021
Por: Gleyse Gulin e Pedro Reschke